quinta-feira, 18 de novembro de 2010

O Homem que sabia djavanês

















Eu tinha chegado fazia pouco ao Rio de Janeiro e estava literalmente
na miséria. Vivia fugindo de casa de pensão em casa de pensão, sem saber onde e como ganhar dinheiro. Até que um dia, lendo 'O Globo', deparei com este anúncio: 'Precisa-se de um professor de djavanês'.

A audição das músicas de Djavan sempre provocou em mim puro mal-estar físico. Mas, enfim, precisava de grana e decidi fazer o possível para vencê-lo.

Naquela semana, fui a todos os barzinhos com música ao vivo da cidade. Perdi a conta de quantas vezes escutei 'e o meu jardim da vida ressecou, morreu' ou 'amar é um deserto e seus temores'. Foram sete dias de tortura; contudo, saí deles com o djavanês na ponta da língua. Em vez de mandar meu currículo, achei que conviria visitar o endereço indicado no anúncio. Era um tríplex de cobertura, decorado com muito dinheiro e mau gosto ainda maior, num dos bairros mais caros do Rio.

Apresentei-me como professor de djavanês e, após ser submetido a inquérito pelos empregados, fui levado à presença do patrão, o doutor Albernaz. Ele me recebeu com um sorriso visivelmente irônico. 'Então o senhor é professor de djavanês, hein?' “Sim, sou”.

Formado em djavanês e com mestrado em beregüê. Tive dez com louvor na minha tese sobre a influência de Carlinhos Brown na obra de James Joyce”.

A tese, obviamente, não existia, mas o doutor Albernaz pareceu acreditar na conversa. 'Então, só o senhor pode me ajudar. Ouça isto, por favor' - e pôs nas minhas mãos uma coletânea do Djavan em CD.

Ao notar minha cara de ponto de interrogação, ele contou sua história. 'Pouco antes de morrer, meu pai me entregou esse CD e disse: ''Filho, tenho certeza de que Djavan canta coisas muito profundas, mas ouvi suas músicas durante anos e nunca consegui entender 'COISA ALGUMA'.

Só podem ser segredos iniciáticos transmitidos da maneira mais hermética possível. Descubra o significado e você obterá a chave da felicidade'.' O doutor Albernaz abriu o encarte do CD e me mostrou uma das letras: ''Obi, obi, obá. Que nem zen, czar. Shalom Jerusalém, z'oiseau'.' O que é isso?.

Eu estava tenso com a pergunta do doutor Albernaz. Tantas músicas do Djavan e o velho tinha de querer saber o que significava a letra de 'Obi'?

Desgraçado. Se ainda fosse aquela do 'o amor que é azulzinho', mas era tarde. Ele tinha os olhos fixos em mim: queria respostas.

Todo o sucesso da minha empreitada dependia de uma explicação convincente e imediata.

De repente, uma idéia. Começo: 'Veja bem. 'Obi' é certamente uma referência a Obi-Wan Kenobi, o sábio de 'Guerra nas Estrelas' interpretado por sir Alec Guinness. 'Obá', por sua vez, remete a 'Djobi Djobá', sucesso dos Gipsy Kings. Djavan buscou contrastar o lado luminoso e britânico da força com os mistérios nômades da alma cigana.

A mesma tensão dialética pode ser verificada no verso subseqüente, 'que nem zen, czar': a contemplação espiritual dos monges budistas e o poder absoluto dos czares.

Perceba como tese e antítese se resolvem lindamente na síntese do verso seguinte: 'shalom Jerusalém' é a paz do espírito na divina cidade..

É ela que faz a alma se elevar aos céus, como um pássaro ('z'oiseau')'.

Os olhos do doutor Albernaz se arregalaram enquanto eu falava. Dois segundos depois de eu terminar, ele gritou: 'Que maravilha! Sabia que havia algo de muito profundo nessa letra! O senhor é um gênio da hermenêutica, um mestre do djavanês!'. Passei a tarde inventando explicações para todas as outras letras do CD - Açaí guardiã..., Kremlin-Berlim-pra-não-dizer-Tel-Aviv..., índio cara-pálida cara de índio...

Citei Joyce, Pound, Oswald, Glauber, Zé Celso, Hélio Oiticica e Odair Cabeça de Poeta: name-dropping é comigo mesmo. Daí por diante, minha ascensão social estava garantida. Eu era o único intelectual do país capaz de traduzir a transcendência da linguagem de Djavan.

Tinha prestígio acadêmico e subsídio do
Ministério da Cultura; gostosíssimas estudantes de lingüística rasgavam as roupas e se atiravam aos meus pés. Mas troquei tudo por um violão, sandálias de couro cru e um penteado novo. Mudei até meu nome graças ao djavanês.

Hoje me chamo Jorge Vercilo e sei que 'nada vai me fazer desistir do amor”

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Livre arbítrio
















As teorias darwinistas e os inúmeros estudos de ciências naturais são categóricos em afirmar que, embora descenda dos símios, o ser humano é o único animal dotado de racionalidade. É, por isso mesmo, capaz de deliberar sobre seu comportamento, dentro e fora da sociedade. Graças a esse raciocínio lógico, o homem decide seu próprio destino. A isso foi dado o nome de livre arbítrio.


Em períodos de trevas, como na Idade Média, essa característica tão própria do ser humano andou capengando. Instituições fortes – invariavelmente capitaneadas pela Igreja – eram as senhoras dos destinos de todos. Dos grandes reis e seus ministros até os mais insignificantes plebeus. Pobreza, pestes e outras desgraças que se abatiam sobre a frágil sociedade vinham acompanhadas de justificativas divinas. Quase sempre punitivas. E assim eram aceitas pela massa desorientada, analfabeta e miserável.

Nos dias atuais, porém, causa surpresa – ou não? – o número de pessoas recorrendo ao divino para justificar suas próprias dificuldades, insucessos, infelicidades, não-realização. Mesmo diante da incrível gama de informações às quais até boa parte dos menos favorecidos têm acesso, nos intervalos das telenovelas, por exemplo.

Mexer com o senso religioso é algo complicado e melindroso. Tanto que talvez nem adiante dizer que neste texto não vai qualquer carga de preconceito. Alguns inevitáveis dedos me serão apontados, queira eu ou não. Afinal, não estamos mais no medievo, mas o tema permanece arraigado nas profundezas do inconsciente das pessoas. Ainda assim, arrisco-me: cada vez mais pessoas estão transferindo para o divino responsabilidades que não cabem a ninguém mais senão a elas próprias.

Um exemplo prático está nas ruas da cidade. Basta uma leitura dos pára-choques e adesivos colados nos vidros dos carros, com sentenças definitivas, do tipo: “É assim porque Deus quis”. Fácil, não? Ele quis, e pronto.
E que tal essa outra, colada no pára-brisa de um velho fusca: “É meu porque foi Deus quem me deu”. Ora, e Deus financia automóvel? Não seria melhor dizer que trabalhou duro e, "graças a Deus", conseguiu comprar o carrinho?

Tem outros, mais otimistas, que tentam demonstrar uma sólida confiança, sabe-se lá tirada de onde. Como o dono de uma kombi - bem rodada, por sinal - que, estampando seu adesivo, adverte aos eventuais gatunos: “Veículo rastreado pelo senhor Jesus”. Pronto! Quem, em sã consciência, se arriscaria a roubar um patrimônio tão bem guardado?

Outros entregam cegamente o volante ao Divino: "Dirigido por mim, guiado por Deus". OK, mas em caso de acidente, os pontos vão para a carteira de habilitação do motorista ou do "Guia"? E tem ainda aquela clássica, muito usual nos pára-choques de caminhões: “Se Deus é por nós, quem será contra nós?”. O governo? O Fisco? Quem sabe, a sogra? O ladrão? E por aí vai...

Com o perdão dos mais fiéis, essa enxurrada de adesivos me incomoda. Que Deus existe, não discordo. Seja lá que forma assuma para este ou aquele crente. Eu mesmo não deixo de invocá-Lo, vez por outra, em momentos de maior aperreio. Só não entendo porque insistir em imputar esse excesso de trabalho ao Homem. Não seria a hora de cuidar da própria vida? De usar o dote dado por Ele – ao menos assim nos dizem desde pequenos – do livre arbítrio?

Afinal, com cada um zelando mais por si e apelando menos para o divino, é bem capaz d'Ele arrumar tempo livre para cuidar dos problemas realmente sérios e graves que vemos grassando por esse mundão de Deus.


* Escrito em 19/02/2008

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

A pressa necessária













Nada de rever conceitos! É simplesmente necessário dizer a verdade, abraçá-la e dormir com ela. Assim, se morremos, morremos na verdade. Nunca na mentira. E se tudo parecer apenas uma bela brincadeira de crianças, ainda melhor. Afinal, são as crianças que levam mais a sério tudo o que fazem.


Vive-se para morrer. Inegável sentença. Mas, enquanto vive-se, mantém-se a inexorável esperança de continuar vivo. E se, para alguns, é mais fácil fingir equilíbrio nessa expectativa diante do que vem à frente - assim como, para outros, mais tranqüilizador é apostar no porvir - por que não renovar a esperança a cada despertar, apenas?


Acordo, logo, estou vivo. Tão simples que não há porque pedir mais.

Reluto em dormir porque quero permanecer noite. Mas até ela, a noite, dorme. Então, durmo com ela, na esperança de despertar com o sol. E no dia seguinte, também ele dorme. Assim segue o ciclo da vida. Impermanente e fugaz.

Explica-se, dessa forma, a dificuldade de esperar os fatos. E mais: os planos. Que planos? Melhor seria reforçar os desejos, tão somente. Saber esperar? Não interessa aprender tanto. Interessa saber do agora. Que daqui a pouco é passado.


Não é o rouxinol, mas a cotovia quem está cantando. A ela, apressada, cabe anunciar o dia seguinte, enquanto seu parceiro inda comemora a noite anterior. E quando canta a cotovia, Julieta, se insistires em segurar o tempo, teu Romeu é um homem morto.


Não quero esperar mais. Nem posso. Está em tempo. Tempo de colher o que foi plantado com dedicação ainda ontem.
Não há mais motivo de espera. Tudo está claro como o dia. Manifeste-se!

* Grato, mr. William

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Ghost of a chance










Uma das mais belas do RUSH, no Roll the Bones*

Like a million little doorways
All the choices we made
All the stages we passed through
All the roles we played

For so many different directions
Our separate paths might have turned
With every door that we opened
Every bridge that we burned

Somehow we find each other
Through all that masquerade
Somehow we found each other
Somehow we have stayed
In a state of grace

I don't believe in destiny
Or the guiding hand of fate
I don't believe in forever
Or love as a mystical state
I don't believe in the stars or the planets
Or angels watching from above
But I believe there's a ghost of a chance we can find someone to love
And make it last...

Like a million little crossroads
Through the backstreets of youth
Each time we turn a new corner
A tiny moment of truth

For so many different connections
Our separate paths might have made
With every door that we opened
Every game we played

Somehow we find each other
Through all that masquerade
Somehow we found each other
Somehow we have stayed
In a state of grace

I don't believe in destiny
Or the guiding hand of fate
I don't believe in forever
Or love as a mystical state
I don't believe in the stars or the planets
Or angels watching from above
But I believe there's a ghost of a chance we can find someone to love
And make it last...

* Lee/Lifeson/Peart

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Like a tumbleweed




















"Aqui embaixo, na terra escura. Antes de irmos todos para o céu"
Jack Kerouac, em Viajante Solitário

* Escrito em 14/06/07

Citei num texto anterior as tumbleweeds, aquelas moitas secas que se desprendem das raízes no outono e se deslocam, rolando ao sabor do vento. São arbustos da família das quenopodiáceas, de origem em terras áridas e muito conhecidas por apreciadores dos filmes do “velho oeste”.

Significado dicionaresco, esse! Melhor ir em busca de outros, mais substanciais. O que são as tumbleweeds, senão um símbolo de absoluto desprendimento? Elas soltam-se, sabiamente, das raízes que as prendem. Rolam, aparentemente sem destino certo, o que é uma ilusão. Na verdade, o vento as está levando a grandes distâncias, mas sempre em um único rumo: a liberdade. E a jornada tem uma função extra. Enquanto rolam, elas espalham suas sementes pelo caminho.


Essas moitas são primorosamente redondas. Portanto, sem quinas ou arestas. São leves, sem o peso de uma vida presa ao mesmo chão. E representam o oeste, onde o moderno, embora derive do antigo, sempre dá a ele uma nova configuração.


A história dessas plantas livres, sem raízes ou donos, causa certa fixação. São secas, mas nem por isso, pouco vistosas. Algumas chegam a medir mais de dois metros de diâmetro. Sabem, como ninguém, como se compor – e recompor – sem deixar pontas soltas ou fiapos pendurados.
Crescem em ambientes considerados hostis, mas não sofrem os efeitos cáusticos que, salvo engano, também podem ser encontrados em cenários supostamente verdes e aconchegantes.

O melhor dessas moitas é que se deixam levar sem questionamentos. É certo que obedecem à vontade do vento, mas quem não gostaria de ser livre a esse ponto? Por dentro, são praticamente ocas, mas tratam de se preencher a si mesmas, sem se apossar de nada das outras plantas.
Se esbarram num obstáculo esperam, tranqüila e pacientemente, que o destino as provenha de uma força propulsora maior que desimpeça o caminho para continuar a jornada.

As tumbleweeds não desistem. Não perdem o equilíbrio. Não xingam, nem se lamentam. Não blasfemam. Apenas vivem. E são o que são...

Harmônica











* Escrito em 30/05/07

O silêncio naquele apartamento era sufocante. Embora fosse noite de sexta-feira, quase sábado, desde que desistira daquela batalha emocional, caíra num tédio que parecia irremediável. Mas esta noite precisava respirar.

Decidiu dar uma volta. Por ali mesmo, naquele bairro do centro, onde morava. As ruas eram estreitas, escuras. Os bares, tão decadentes quanto as prostitutas que insistiam em buscar freguesia.
No passado, costumava compará-lo ao Bairro Vermelho, em Amsterdã. Hoje, porém, a comparação era totalmente absurda. Aquela pequena cidade à beira do mar tornara-se insuportável.

Precisava atrair o sono. Relevou o cenário que se formara na sua cabeça. Pegou o casaco e saiu. Um gole, alguns cigarros e uma caminhada fariam o serviço. No primeiro boteco, uma briga de bêbados o surpreendeu à entrada. Recuou. Mais uns passos e encontrou um lugar tão velho e sujo quanto o anterior, mas tranqüilo.

Sentou-se ao balcão e pediu um conhaque.
Refletia novamente como tudo havia chegado àquele ponto. Balançou a cabeça para afastar a idéia. Não iria mais pensar nisso. Desde que, finalmente, descobrira seu coração novamente vazio, desistiu de pensar no assunto. Situação absurda, surreal.

Aquele bar o oprimia. Escuro, cheirando a uma mistura de álcool, fumo e mofo. Pagou e saiu. Acendeu um cigarro, debruçou-se sobre a amurada da ponte que ligava as duas ilhas. Queria esvaziar a cabeça de qualquer pensamento. Mas se pensava nisso, já a estava preenchendo do desejo de não-pensar.


Reparou que há algum tempo não sorria.
Àquela hora, não havia ruído. Bem diferente do tráfego do dia, da multidão anônima nas calçadas. A hora era calma, silêncio de morte.

Foi então que ouviu algo parecido com o som de uma harmônica. Olhou para os lados. Ninguém. No final da ponte, na calçada oposta, apenas um amontoado de sacos. Fixou a vista. Era uma pessoa. Parecia um dos muitos mendigos que acampavam por ali.


Aproximou-se lentamente. O som crescia. Sim, conhecia aquela melodia, um blues, com o qual se habituara há muito, desde que havia começado a tocar em casas noturnas da região. Mas não conseguia identificar a música.


A surpresa era quem o executava agora. Barbas brancas, cabelo ralo e desgrenhado sob um chapéu de feltro amarfanhado e sujo. Quase tão sujo quanto suas calças e casaco desbotados. Ao lado, o que pareciam ser seus pertences: uma velha mochila e um saco de tecido.


O velho percebeu sua aproximação e parou de tocar. Instintivamente, pediu que continuasse. Conhecia aquilo, não lembrava de onde. Ele atendeu, retomou a música, sem pressa e com estranha delicadeza. Sentou-se ao seu lado, ignorando a sujeira da calçada. O rio passava calmo, lá embaixo.


- O senhor é músico?


- Fui. Um dia. Essa gaita é o que me sobrou...

- Com tanto talento, por que vive nas ruas?


- É da vida. A gente não espera, mas acontece.

Observou-lhe as feições maltratadas, mas que, de certa forma, denotavam um ar de liberdade.


- Toca bem.


- Aprendi cedo, era meio de vida. Como se vê, não é mais.


O homem lhe inspirava confiança. Explicou-lhe que também ganhava a vida como músico. Pensou em se lamentar do dinheiro curto, dos dias trocados pelas noites. Não valia a pena, diante da situação do seu inesperado amigo. Menos ainda falar daquele vazio que sentia. Sensação de tempo perdido.
Para sua surpresa, o velho pareceu notar.

- A escuridão só se transforma em luz se houver emoção, meu jovem.

- Desculpe, não entendi...


- Um homem só pode pensar e agir se houver amor. Sem ele, vira estátua.


- Por que me diz isso?


- É o que vejo. Uma expressão de descrédito. Alguma coisa foi mal, recentemente...


- Foi. Está superada.


- Pois é preciso preencher o vaso vazio... Mas jamais conseguirá sem destampá-lo.


Cada vez mais surpreso, perguntou-lhe, num impulso, o que deveria fazer.


- Sou um andarilho, um mendigo. Não um conselheiro. Procure você mesmo. O que posso dizer é que o que temos dentro de nós é o essencial para atingir a felicidade.


- Parece possível, então, viver sem o amor de alguém...


- Não se pode exigir que alguém nos ame. Dê boas razões para que alguém se aproxime e tenha paciência que a vida faça o resto.


- Onde já ouvi isso?


- Dizem que foi William Shakespeare - disse-lhe o veho, que sorriu e levantou-se - mas quem tem certeza?


Apanhou suas coisas, pendurou-as às costas e começou a caminhar.
A certa distância, ele voltou a ouvir a gaita. Enfim, reconheceu a música. Era Smile!

Observou-o ir, enquanto o som se dissolvia ao longe, ao tempo em que aquele homem velho se misturava às sombras da noite.

Moitas ao vento
















* Escrito em 13/05/07

Dia sem graça! Vontade danada de escrever, e não sai nada astral. Mas não deixo a cabeça guiar a pena. Mais proveitoso é comandá-la com o coração. É dele, afinal, a função ingrata de processar o que de negativo se recebe na vida.

Você não precisa concordar, claro. Vai perguntar: e o que vem de positivo? Cabe lá, sim. Mas uma over de negativismo, tipo caranguejo na panela, puxando pra baixo o outro infeliz que tenta se salvar, convenhamos, não é mole.
Tem gente que age assim e, na cara dura, se declara “leve, criativo e feliz”. Leve porque jogou o peso do ego em cima de nós!

Mas gente assim também não encontra muito cafuné por essas bandas. Pegou pesado, leva de volta e ainda paga o frete, como diria seu Lunga, o mestre. Lei da ação e reação. Não aquela do karma, mas a de Newton: "Se A aplica uma força sobre B, recebe de volta uma força de igual intensidade".

Na terra da minha mãe, tem uma forma engraçada de classificar gente chata: “fulano é pior que mel de abelha com farinha”. Tem mistura mais enjoativa? Chiclete na sola do pé ou ressaca com gosto de cabo de guarda-chuva. Mas essa tem remédio. Bebe água, muita! Poço é o que não falta! Rá!


Falar em água, é muita chuva lá fora. Dia frio e chato. Mesmo de folga. Vem uns amigos aqui em casa mais tarde. Quem sabe a coisa melhora? Por enquanto, a biografia de Kerouac segura a onda. Estilo de palavras que parecem soltas ao vento. Mas só parecem. Lê com atenção e você vai se surpreender com a lição de simplicidade. Soltas, mesmo, só as tumbleweeds descritas pelo andarilho ao longo da estrada para o oeste. Quer saber o que são tumbleweeds? Olha no pai-dos-burros eletrônico.


Aliás, Kerouac pode até nem ter lido Schopenhauer. Mas que eles têm semelhanças, isso têm. Nunca vi dois escritores de vidas tão distintas falarem com tanta propriedade sobre o “gênero” humano e suas idiossincrasias.


A gente vai crescendo – por fora e por dentro, quando tem sorte – e vai tomando partido. Tem que tomar. Só existem dois: o dos que se adaptam ao sistema e o dos que se recusam a dar o braço a torcer. Esses, são taxados de rebeldes, ou excêntricos, quando têm mais sorte. Mas para a maioria, são chatos e metidos mesmo.


Pior é quando os adjetivos partem de quem se acha o supra-sumo da vida. Gente que não consegue enxergar o próprio umbigo porque não tira os olhos do furo abdominal alheio. Se liga, cara! Se o próximo te incomoda, passa para o próximo do próximo...


Hoje ficou difícil mesmo. Dia chato. Mas a vida vai se acertando mesmo debaixo de chuva grossa, relâmpagos e trovões. E de um exercício literário – e isso é literatura, seu Carrero? – que termina num tom de desabafo: pra encher lingüiça, blog e a paciência alheia.
Mas se você chegou até aqui, valeu a pena a enrolação. Posso dormir feliz.

Licantropia
















ou Sobre mulheres e lobos


* Escrito em 16/05/07

Esse é um tema deveras interessante, e, vez por outra, tenho ouvido - ou experimentado - algo a respeito. A mais recente conversa, travada, numa mesa de bar, versou sobre mulheres que porventura pareçam sofrer dessa síndrome. Um amigo tem certeza, inclusive, que casou com uma dessas, tamanhos são os surtos da moça. Prometi-lhe, então, postar algo sobre o assunto.

Uma tênue linha separa os conceitos folclórico e clínico desse tipo de distúrbio. A palavra vem do grego "lycos" (lobo) e "Anthropos" (homem), o que leva à associação imediata com o lendário bicho comedor de carne humana. Mas o problema é bem mais sério do que se pensa.

Enquanto na cultura popular a licantropia se limita à crença de que, durante a Lua cheia, algumas pessoas podem assumir uma personalidade animalesca, tornando-se agressivos (alguns, em nível assustador, acreditem), para a ciência, esse mal é bem mais pragmático.
Trata-se de um profundo distúrbio psiquiátrico que provoca um transtorno do senso de identidade. A licantropia atua, principalmente, sobre distúrbios afetivos e sobre pessoas esquizofrênicas.

Para estudiosos, a síndrome pode ser interpretada como uma tentativa de exprimir emoções suprimidas, especialmente de ordem agressiva ou sexual, muitas vezes por meio de uma reação dos instintos animais, ou mesmo assumindo uma identificação com um animal em particular.


O fato é que, no lado científico, a licantropia não depende da Lua cheia. Ou seja: quem sofre do mal, pode surtar em qualquer das fases lunares. E a crise, na maioria das vezes, precisa de medicação forte para ser controlada.

O problema é que a maioria das pessoas que sofre de licantropia sequer conhece a síndrome do lobisomem. E aí, pior para quem estiver por perto.

A rebelião das ideias














* Escrito em 12/09/07

Um questionamento noturno, assim, de assalto: afinal, por que escrever? Há algo na ordem do dia que demande o esforço de empunhar uma pena sobre o papel? Ou há, sequer, como simples justificativa, algo pensado que tenha, forçosamente, que ser dito por escrito? Digo isso a título de provocação, baseada na acidez da pena do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860). Homem polêmico, criticava os eruditos - segundo ele, limitados a "aprender coisas nos livros", ou seja, "pensar o pensamento dos outros" - e elogiava os livres pensadores, que liam as coisas "diretamente no livro do mundo".


Permito-me, porém, pedir clemência a Schopenhauer. Afinal, suas críticas miravam os escritores que faziam da função um caça-níqueis. Com a permissão do filósofo, afirmo que não tratarei aqui dessa categoria de artistas. Falo sobre o ato de escrever apenas por escrever. Para expressar-se. Às vezes, sequer com a intenção de ser lido por alguém mais.


Pode parecer tolo, mas não é. É verdade que nem sempre a inspiração está presente quando estamos prestes a iniciar um texto. Muitas vezes, nem há sinal dela. E ainda assim insistimos, movidos por uma necessidade interior, misteriosa. Por vezes, a inspiração nos assalta bem no meio do esforço de escrever. E então, como já deve ter ocorrido a muitos "atrevidos" – como eu –, somos compelidos a rever tudo o que já foi posto no papel. As idéias já plantadas passam a carecer de sentido, clamando por um replantio, adubado, dessa vez, pela inspiração que chegou após a aragem do terreno fértil.


Mas escrever é assim mesmo, justificam os "atrevidos". Nem sempre é um ato movido pela inspiração plena. Também não é sempre que há musas por perto para nos abrir o apetite. Schopenhauer - ele de novo - recitava em sua obra que "a pena está para o pensamento assim como a bengala está para o andar". Mas se nos ocorre uma inspiração, talvez não seja de todo o mal emprestar-lhe uma "bengala" e evitar que ela nos escape.

Em outras ocasiões, embora dispostos a escrever, nos falta o brilhantismo. Característica, aliás, pouco popular entre os "atrevidos". Conhecemos casos de escritores dotados de verdadeiro brilhantismo. Há cânones da literatura que nos brindam com essa qualidade rara até mesmo em pequenas frases soltas. Para estes, permita-me o filósofo, o ato de escrever ultrapassa a questão de sobrevivência. É mais, até, que propriamente arte. Para eles, escrever é divino. Pena que esta seja uma sensação para poucos.

Voltando aos "atrevidos". Para estes, escrever pode parecer tão somente um passatempo. Algo como este texto, por exemplo: despido de qualquer enredo sensato ou lógico. O não-enredo, aliás, é outra característica forte em muitos textos, de variados estilos e autores. Recorro novamente a Schopenhauer: "poucos escrevem como o arquiteto constrói, primeiro esboçando o projeto e considerando-o detalhadamente. A maioria escreve como se joga dominó: às vezes segundo uma intenção, às vezes por mero acaso, uma pedra se encaixa na outra".

Retomamos, então, a pergunta inicial: por que escrever, se há tantas dificuldades em torno desse ato aparentemente simples? Quando nem sempre há inspiração, quase nunca há brilhantismo e, de resto, corremos o risco de produzir longos textos sem qualquer enredo a embasá-los? Ora, numa explicação mais simples, escreve-se apenas para passar o tempo. Ou - numa explicação mais nobre - para dar vazão a toneladas de pensamentos que costumam ficar presos na nossa cabeça, transformando-a em uma espécie de "penitenciária de idéias".

O ato de escrever, então, poderia ser comparado ao de cavar um túnel de fuga para essas idéias. Dar a elas a chance de liberdade, de ganhar o mundo. Sim, porque não há razão plausível para que permaneçam presas na mente, senão pelo triste fato de ninguém lhes haver oferecido alforria justa. E é bom que se diga: se a libertação das idéias demorar, um dia pode tornar-se inevitável que elas se rebelem, se amotinem, e, unidas por esse objetivo, forcem a sua própria saída.

Por isso, caríssimo leitor, não estranhe se, misteriosamente, se sentir compelido a lançar mão de papel e lápis, no meio de uma noite insone, ou enquanto dirige seu carro. Ou mesmo durante o expediente de trabalho. É claro que há ocasiões e cenários mais favoráveis à rebelião das idéias. Um bom filme, um livro interessante, uma vernissage. Quem sabe uma instigante peça de teatro. Ou um concerto?

A revolta, no entanto, pode também acontecer sem qualquer estímulo perceptível. Talvez, simplesmente durante uma boa conversa. O fato é que esse motim é sempre deflagrado por nós mesmos. Sozinhos e sem aviso prévio. Nem bem sabemos sobre o que escrever. Não há uma inspiração formada ainda. Muito menos uma onda de brilhantismo nos invadindo. Nem dispomos, sequer, de um bom enredo a ser desenvolvido. Muitas vezes não há enredo nenhum, na verdade. O que não evita de nos sentirmos compelidos a rabiscar qualquer coisa.

E, se depois de saciado o impulso, revisarmos o que foi escrito, é quase certo encontrar sobre o branco do papel apenas um punhado de frases desconexas. Algo quase ininteligível. Impensável, então, mostrá-lo a alguém mais. Ainda assim, não há motivo para espanto, raiva ou frustração. Muito menos justifica a precipitação de amassar e jogar o trabalho ao cesto.

Ele, ao menos, contém um item que vem somar-se à lista da não-inspiração, do não-brilhantismo e do não-enredo: a não-apoteose. É ela a responsável por nos deixar entediados, lendo e relendo os escritos num arroubo, embasbacados, sem compreender a nós mesmos. Como chegamos até ali? Onde está o nexo daquelas linhas soltas?

Pode, sim, acontecer uma não-apoteose. É até provável que, na maioria das vezes, ela ocorra. Afinal, a dificuldade de dar forma às idéias aflige até mesmo grandes autores. E não somente no papel, mas nas tintas e telas, nos écrans, nos blocos de pedra, nos palcos, nas notas musicais. É a não-apoteose dominando a arte.

Todavia, ainda que fiquemos insatisfeito com o resultado da nossa primeira investida no campo da escrita, não deixemos de guardar os textos, reservando para eles o alto de um armário ou um distante e obscuro fundo de gaveta. Um lugar só nosso, onde ninguém mais os encontre.

Um belo dia, quem sabe, arrumando a escrivaninha ou o armário, talvez em busca de um livro, uma conta pendente, um documento qualquer, não esbarramos neles? E então, aquilo que antes não nos dissera muita coisa – coisa alguma, na verdade – lido após um período de "repouso" pode nos surpreender. Nem que seja para lembrar que podemos, sim, escrever com liberdade.

Talvez assim, com aquele primeiro texto nas mãos, uma nova rebelião de idéias tenha lugar na nossa mente, transformando a não-inspiração em inspiração, em brilhantismo e enredo, garantindo, enfim, uma fantástica apoteose.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

O que eles disseram sobre o "cinquentão"
















13/07/07 - Dia Mundial do Rock


"O Rock é a AIDS da música atual." Júlio Medaglia, maestro

"Não dura até Junho!"
Revista Variety de 1955, sobre o Rock and Roll

"O Rock and Roll é a marcha marcial de todos os delinqüentes juvenis sobre a face da Terra."
Frank Sinatra

"O Rock propõe uma manutenção eterna da juventude e isso é irreal. Ele fez parte da minha vida, mas passou."
Paulo Ricardo, pseudo-cantor, à Revista IstoÉ

"Tenho esperanças que o Rock vai evoluir e descobrir o quarto acorde, porque fazer música só com três acordes é difícil, né?"
Tom Jobim, em entrevista à revista Playboy, setembro de 1988

"I want to ride my bicycle. want to ride and run."
Meu pai, tentando, ao longo de mais de 20 anos, ridicularizar as letras das músicas

"O rock trouxe uma nova concepção de som e música."
Cazuza, numa redação escolar escrita em 1971

“O diabo é o pai do rock.”
Raul Seixas, cantor e mago do rock, que provou que a Bahia tem mais que apenas axé, meu rei

De volta ao mundo real
















"A realidade é apenas uma ilusão provocada pela ausência de drogas no organismo." Ivan Lessa, cronista

Pois é. Depois que encerrei o velho Polis et circensis, fiquei apenas com o blog de política - o Polis -, um universo muito mais surreal que o nosso.

Mas tinha perdido o espaço para publicar meus textos pessoais.
A solução foi criar este espaço, que decidi batizar com um nome ligado à música, outra de minhas paixões.
Primeiro, postarei os textos antigos, alguns selecionados do Polis et circensis. Depois virão os novos.
Espero que freqüentem e – quem sabe – até gostem...