quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Livre arbítrio
















As teorias darwinistas e os inúmeros estudos de ciências naturais são categóricos em afirmar que, embora descenda dos símios, o ser humano é o único animal dotado de racionalidade. É, por isso mesmo, capaz de deliberar sobre seu comportamento, dentro e fora da sociedade. Graças a esse raciocínio lógico, o homem decide seu próprio destino. A isso foi dado o nome de livre arbítrio.


Em períodos de trevas, como na Idade Média, essa característica tão própria do ser humano andou capengando. Instituições fortes – invariavelmente capitaneadas pela Igreja – eram as senhoras dos destinos de todos. Dos grandes reis e seus ministros até os mais insignificantes plebeus. Pobreza, pestes e outras desgraças que se abatiam sobre a frágil sociedade vinham acompanhadas de justificativas divinas. Quase sempre punitivas. E assim eram aceitas pela massa desorientada, analfabeta e miserável.

Nos dias atuais, porém, causa surpresa – ou não? – o número de pessoas recorrendo ao divino para justificar suas próprias dificuldades, insucessos, infelicidades, não-realização. Mesmo diante da incrível gama de informações às quais até boa parte dos menos favorecidos têm acesso, nos intervalos das telenovelas, por exemplo.

Mexer com o senso religioso é algo complicado e melindroso. Tanto que talvez nem adiante dizer que neste texto não vai qualquer carga de preconceito. Alguns inevitáveis dedos me serão apontados, queira eu ou não. Afinal, não estamos mais no medievo, mas o tema permanece arraigado nas profundezas do inconsciente das pessoas. Ainda assim, arrisco-me: cada vez mais pessoas estão transferindo para o divino responsabilidades que não cabem a ninguém mais senão a elas próprias.

Um exemplo prático está nas ruas da cidade. Basta uma leitura dos pára-choques e adesivos colados nos vidros dos carros, com sentenças definitivas, do tipo: “É assim porque Deus quis”. Fácil, não? Ele quis, e pronto.
E que tal essa outra, colada no pára-brisa de um velho fusca: “É meu porque foi Deus quem me deu”. Ora, e Deus financia automóvel? Não seria melhor dizer que trabalhou duro e, "graças a Deus", conseguiu comprar o carrinho?

Tem outros, mais otimistas, que tentam demonstrar uma sólida confiança, sabe-se lá tirada de onde. Como o dono de uma kombi - bem rodada, por sinal - que, estampando seu adesivo, adverte aos eventuais gatunos: “Veículo rastreado pelo senhor Jesus”. Pronto! Quem, em sã consciência, se arriscaria a roubar um patrimônio tão bem guardado?

Outros entregam cegamente o volante ao Divino: "Dirigido por mim, guiado por Deus". OK, mas em caso de acidente, os pontos vão para a carteira de habilitação do motorista ou do "Guia"? E tem ainda aquela clássica, muito usual nos pára-choques de caminhões: “Se Deus é por nós, quem será contra nós?”. O governo? O Fisco? Quem sabe, a sogra? O ladrão? E por aí vai...

Com o perdão dos mais fiéis, essa enxurrada de adesivos me incomoda. Que Deus existe, não discordo. Seja lá que forma assuma para este ou aquele crente. Eu mesmo não deixo de invocá-Lo, vez por outra, em momentos de maior aperreio. Só não entendo porque insistir em imputar esse excesso de trabalho ao Homem. Não seria a hora de cuidar da própria vida? De usar o dote dado por Ele – ao menos assim nos dizem desde pequenos – do livre arbítrio?

Afinal, com cada um zelando mais por si e apelando menos para o divino, é bem capaz d'Ele arrumar tempo livre para cuidar dos problemas realmente sérios e graves que vemos grassando por esse mundão de Deus.


* Escrito em 19/02/2008

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