segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Harmônica











* Escrito em 30/05/07

O silêncio naquele apartamento era sufocante. Embora fosse noite de sexta-feira, quase sábado, desde que desistira daquela batalha emocional, caíra num tédio que parecia irremediável. Mas esta noite precisava respirar.

Decidiu dar uma volta. Por ali mesmo, naquele bairro do centro, onde morava. As ruas eram estreitas, escuras. Os bares, tão decadentes quanto as prostitutas que insistiam em buscar freguesia.
No passado, costumava compará-lo ao Bairro Vermelho, em Amsterdã. Hoje, porém, a comparação era totalmente absurda. Aquela pequena cidade à beira do mar tornara-se insuportável.

Precisava atrair o sono. Relevou o cenário que se formara na sua cabeça. Pegou o casaco e saiu. Um gole, alguns cigarros e uma caminhada fariam o serviço. No primeiro boteco, uma briga de bêbados o surpreendeu à entrada. Recuou. Mais uns passos e encontrou um lugar tão velho e sujo quanto o anterior, mas tranqüilo.

Sentou-se ao balcão e pediu um conhaque.
Refletia novamente como tudo havia chegado àquele ponto. Balançou a cabeça para afastar a idéia. Não iria mais pensar nisso. Desde que, finalmente, descobrira seu coração novamente vazio, desistiu de pensar no assunto. Situação absurda, surreal.

Aquele bar o oprimia. Escuro, cheirando a uma mistura de álcool, fumo e mofo. Pagou e saiu. Acendeu um cigarro, debruçou-se sobre a amurada da ponte que ligava as duas ilhas. Queria esvaziar a cabeça de qualquer pensamento. Mas se pensava nisso, já a estava preenchendo do desejo de não-pensar.


Reparou que há algum tempo não sorria.
Àquela hora, não havia ruído. Bem diferente do tráfego do dia, da multidão anônima nas calçadas. A hora era calma, silêncio de morte.

Foi então que ouviu algo parecido com o som de uma harmônica. Olhou para os lados. Ninguém. No final da ponte, na calçada oposta, apenas um amontoado de sacos. Fixou a vista. Era uma pessoa. Parecia um dos muitos mendigos que acampavam por ali.


Aproximou-se lentamente. O som crescia. Sim, conhecia aquela melodia, um blues, com o qual se habituara há muito, desde que havia começado a tocar em casas noturnas da região. Mas não conseguia identificar a música.


A surpresa era quem o executava agora. Barbas brancas, cabelo ralo e desgrenhado sob um chapéu de feltro amarfanhado e sujo. Quase tão sujo quanto suas calças e casaco desbotados. Ao lado, o que pareciam ser seus pertences: uma velha mochila e um saco de tecido.


O velho percebeu sua aproximação e parou de tocar. Instintivamente, pediu que continuasse. Conhecia aquilo, não lembrava de onde. Ele atendeu, retomou a música, sem pressa e com estranha delicadeza. Sentou-se ao seu lado, ignorando a sujeira da calçada. O rio passava calmo, lá embaixo.


- O senhor é músico?


- Fui. Um dia. Essa gaita é o que me sobrou...

- Com tanto talento, por que vive nas ruas?


- É da vida. A gente não espera, mas acontece.

Observou-lhe as feições maltratadas, mas que, de certa forma, denotavam um ar de liberdade.


- Toca bem.


- Aprendi cedo, era meio de vida. Como se vê, não é mais.


O homem lhe inspirava confiança. Explicou-lhe que também ganhava a vida como músico. Pensou em se lamentar do dinheiro curto, dos dias trocados pelas noites. Não valia a pena, diante da situação do seu inesperado amigo. Menos ainda falar daquele vazio que sentia. Sensação de tempo perdido.
Para sua surpresa, o velho pareceu notar.

- A escuridão só se transforma em luz se houver emoção, meu jovem.

- Desculpe, não entendi...


- Um homem só pode pensar e agir se houver amor. Sem ele, vira estátua.


- Por que me diz isso?


- É o que vejo. Uma expressão de descrédito. Alguma coisa foi mal, recentemente...


- Foi. Está superada.


- Pois é preciso preencher o vaso vazio... Mas jamais conseguirá sem destampá-lo.


Cada vez mais surpreso, perguntou-lhe, num impulso, o que deveria fazer.


- Sou um andarilho, um mendigo. Não um conselheiro. Procure você mesmo. O que posso dizer é que o que temos dentro de nós é o essencial para atingir a felicidade.


- Parece possível, então, viver sem o amor de alguém...


- Não se pode exigir que alguém nos ame. Dê boas razões para que alguém se aproxime e tenha paciência que a vida faça o resto.


- Onde já ouvi isso?


- Dizem que foi William Shakespeare - disse-lhe o veho, que sorriu e levantou-se - mas quem tem certeza?


Apanhou suas coisas, pendurou-as às costas e começou a caminhar.
A certa distância, ele voltou a ouvir a gaita. Enfim, reconheceu a música. Era Smile!

Observou-o ir, enquanto o som se dissolvia ao longe, ao tempo em que aquele homem velho se misturava às sombras da noite.

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