segunda-feira, 30 de agosto de 2010

A rebelião das ideias














* Escrito em 12/09/07

Um questionamento noturno, assim, de assalto: afinal, por que escrever? Há algo na ordem do dia que demande o esforço de empunhar uma pena sobre o papel? Ou há, sequer, como simples justificativa, algo pensado que tenha, forçosamente, que ser dito por escrito? Digo isso a título de provocação, baseada na acidez da pena do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860). Homem polêmico, criticava os eruditos - segundo ele, limitados a "aprender coisas nos livros", ou seja, "pensar o pensamento dos outros" - e elogiava os livres pensadores, que liam as coisas "diretamente no livro do mundo".


Permito-me, porém, pedir clemência a Schopenhauer. Afinal, suas críticas miravam os escritores que faziam da função um caça-níqueis. Com a permissão do filósofo, afirmo que não tratarei aqui dessa categoria de artistas. Falo sobre o ato de escrever apenas por escrever. Para expressar-se. Às vezes, sequer com a intenção de ser lido por alguém mais.


Pode parecer tolo, mas não é. É verdade que nem sempre a inspiração está presente quando estamos prestes a iniciar um texto. Muitas vezes, nem há sinal dela. E ainda assim insistimos, movidos por uma necessidade interior, misteriosa. Por vezes, a inspiração nos assalta bem no meio do esforço de escrever. E então, como já deve ter ocorrido a muitos "atrevidos" – como eu –, somos compelidos a rever tudo o que já foi posto no papel. As idéias já plantadas passam a carecer de sentido, clamando por um replantio, adubado, dessa vez, pela inspiração que chegou após a aragem do terreno fértil.


Mas escrever é assim mesmo, justificam os "atrevidos". Nem sempre é um ato movido pela inspiração plena. Também não é sempre que há musas por perto para nos abrir o apetite. Schopenhauer - ele de novo - recitava em sua obra que "a pena está para o pensamento assim como a bengala está para o andar". Mas se nos ocorre uma inspiração, talvez não seja de todo o mal emprestar-lhe uma "bengala" e evitar que ela nos escape.

Em outras ocasiões, embora dispostos a escrever, nos falta o brilhantismo. Característica, aliás, pouco popular entre os "atrevidos". Conhecemos casos de escritores dotados de verdadeiro brilhantismo. Há cânones da literatura que nos brindam com essa qualidade rara até mesmo em pequenas frases soltas. Para estes, permita-me o filósofo, o ato de escrever ultrapassa a questão de sobrevivência. É mais, até, que propriamente arte. Para eles, escrever é divino. Pena que esta seja uma sensação para poucos.

Voltando aos "atrevidos". Para estes, escrever pode parecer tão somente um passatempo. Algo como este texto, por exemplo: despido de qualquer enredo sensato ou lógico. O não-enredo, aliás, é outra característica forte em muitos textos, de variados estilos e autores. Recorro novamente a Schopenhauer: "poucos escrevem como o arquiteto constrói, primeiro esboçando o projeto e considerando-o detalhadamente. A maioria escreve como se joga dominó: às vezes segundo uma intenção, às vezes por mero acaso, uma pedra se encaixa na outra".

Retomamos, então, a pergunta inicial: por que escrever, se há tantas dificuldades em torno desse ato aparentemente simples? Quando nem sempre há inspiração, quase nunca há brilhantismo e, de resto, corremos o risco de produzir longos textos sem qualquer enredo a embasá-los? Ora, numa explicação mais simples, escreve-se apenas para passar o tempo. Ou - numa explicação mais nobre - para dar vazão a toneladas de pensamentos que costumam ficar presos na nossa cabeça, transformando-a em uma espécie de "penitenciária de idéias".

O ato de escrever, então, poderia ser comparado ao de cavar um túnel de fuga para essas idéias. Dar a elas a chance de liberdade, de ganhar o mundo. Sim, porque não há razão plausível para que permaneçam presas na mente, senão pelo triste fato de ninguém lhes haver oferecido alforria justa. E é bom que se diga: se a libertação das idéias demorar, um dia pode tornar-se inevitável que elas se rebelem, se amotinem, e, unidas por esse objetivo, forcem a sua própria saída.

Por isso, caríssimo leitor, não estranhe se, misteriosamente, se sentir compelido a lançar mão de papel e lápis, no meio de uma noite insone, ou enquanto dirige seu carro. Ou mesmo durante o expediente de trabalho. É claro que há ocasiões e cenários mais favoráveis à rebelião das idéias. Um bom filme, um livro interessante, uma vernissage. Quem sabe uma instigante peça de teatro. Ou um concerto?

A revolta, no entanto, pode também acontecer sem qualquer estímulo perceptível. Talvez, simplesmente durante uma boa conversa. O fato é que esse motim é sempre deflagrado por nós mesmos. Sozinhos e sem aviso prévio. Nem bem sabemos sobre o que escrever. Não há uma inspiração formada ainda. Muito menos uma onda de brilhantismo nos invadindo. Nem dispomos, sequer, de um bom enredo a ser desenvolvido. Muitas vezes não há enredo nenhum, na verdade. O que não evita de nos sentirmos compelidos a rabiscar qualquer coisa.

E, se depois de saciado o impulso, revisarmos o que foi escrito, é quase certo encontrar sobre o branco do papel apenas um punhado de frases desconexas. Algo quase ininteligível. Impensável, então, mostrá-lo a alguém mais. Ainda assim, não há motivo para espanto, raiva ou frustração. Muito menos justifica a precipitação de amassar e jogar o trabalho ao cesto.

Ele, ao menos, contém um item que vem somar-se à lista da não-inspiração, do não-brilhantismo e do não-enredo: a não-apoteose. É ela a responsável por nos deixar entediados, lendo e relendo os escritos num arroubo, embasbacados, sem compreender a nós mesmos. Como chegamos até ali? Onde está o nexo daquelas linhas soltas?

Pode, sim, acontecer uma não-apoteose. É até provável que, na maioria das vezes, ela ocorra. Afinal, a dificuldade de dar forma às idéias aflige até mesmo grandes autores. E não somente no papel, mas nas tintas e telas, nos écrans, nos blocos de pedra, nos palcos, nas notas musicais. É a não-apoteose dominando a arte.

Todavia, ainda que fiquemos insatisfeito com o resultado da nossa primeira investida no campo da escrita, não deixemos de guardar os textos, reservando para eles o alto de um armário ou um distante e obscuro fundo de gaveta. Um lugar só nosso, onde ninguém mais os encontre.

Um belo dia, quem sabe, arrumando a escrivaninha ou o armário, talvez em busca de um livro, uma conta pendente, um documento qualquer, não esbarramos neles? E então, aquilo que antes não nos dissera muita coisa – coisa alguma, na verdade – lido após um período de "repouso" pode nos surpreender. Nem que seja para lembrar que podemos, sim, escrever com liberdade.

Talvez assim, com aquele primeiro texto nas mãos, uma nova rebelião de idéias tenha lugar na nossa mente, transformando a não-inspiração em inspiração, em brilhantismo e enredo, garantindo, enfim, uma fantástica apoteose.

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